Em
apenas quatro dias, de 29 de setembro a 2 de outubro, Altamira foi
manchada pelo sangue de nove assassinatos. Estes são os assumidos
pela Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do
Pará. Pode ser mais. E pelo menos mais uma pessoa foi morta, desta
vez pela Polícia
Militar,
em 11 de outubro. Málaque Mauad Soberay, 47 anos, foi uma das mães
que hoje chora pelo seu filho morto. Magid, de 22 anos, era estudante
do sexto semestre de Geografia no campus da Universidade Federal do
Pará (UFPA), em Altamira. Málaque, que ganha a vida fazendo
salgados para vender, destacou-se na manifestação contra a
violência que percorreu as ruas da cidade. Ela puxou um coro que não
era de vingança, como é tão comum em momentos de dor extrema.
Málaque não pediu mais sangue. Málaque não pediu linchamento.
Málaque pediu amor. Amor até mesmo pelos assassinos do seu filho. E
especialmente por suas mães.
1) Paisagem
e Violência
Escolher
o amor é uma escolha também política, no que a política tem de
humanizadora. Málaque conhece a desigualdade da zona urbana de
Altamira porque foi conselheira tutelar por dois mandatos. E conhece
a destruição promovida pela construção da Usina Hidrelétrica de
Belo Monte, que
ela chama de “Belo Monstro”.
A cidade vive hoje um momento de terra arrasada. Mas não como
metáfora. Terra e rio estão arrasados. E as pessoas morrem.
A
hidrelétrica foi imposta aos povos da floresta e depois liberada
pelo IBAMA sem que todas as medidas condicionantes, as de prevenção
e de contrapartida determinadas para a realização de uma obra desse
porte, tivessem sido cumpridas. Altamira saltou de 77 mil habitantes,
em 2000, para estimados 111 mil, em 2017, um crescimento provocado em
grande parte pelo movimento produzido pela implantação da usina.
Belo Monte, ainda não totalmente concluída, mas liberada para
operação no final de 2015, é a maior obra do setor energético do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) dos
governos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff.
Apenas
a notícia de que um investimento deste porte pode acontecer, com
contratação de mão de obra e oportunidade de pequenos e grandes
negócios, dá início a um intenso processo de migração que move
uma parte do Brasil e a consequente mudança da paisagem urbana.
Altamira era uma cidade com problemas, como grande parte das cidades
à beira da Transamazônica, e tornou-se uma cidade com problemas
multiplicados e ainda mais graves. Tudo isso se intensificou no
início dos anos 2000, com a notícia de que a obra seria finalmente
materializada no rio Xingu, depois de mais de 30 anos de resistência
dos movimentos sociais e dos povos da floresta. E se acelerou a
partir de 2010, quando
a usina foi leiloada e em seguida construída.
Como
comparação, vale lembrar que, no ano de 2000 inteiro, Altamira
registrou oito assassinatos. Um a menos que nestes quatro dias de
2017.
2)
Números e Carne
Em
2000, conforme dados do Observatório de Homicídios do Instituto
Igarapé, a taxa de homicídios de Altamira era de 10,3 mortes por
100 mil habitantes. Entre 2000 e 2002, verificou-se um aumento
significativo: a taxa passou para 35,1 homicídios por 100 mil
habitantes. Ou seja: mais do que triplicou. Estes primeiros anos do
século 21 são um período de grande resistência à Belo Monte e de
luta pela defesa da floresta por movimentos sociais e povos
tradicionais, diante dos ataques da grilagem.
O
chamado “consórcio da morte”, formado por grileiros e
fazendeiros, agia (e hoje voltou a agir) com desenvoltura na região.
Em Castelo dos Sonhos, distrito de Altamira, Bartolomeu
Morais da Silva, o “Brasília”,
grande liderança popular, foi assassinado em 2002. Antes, em 2001,
outro líder importante, Ademir
Federicci, o “Dema”,
já havia sido executado em Altamira.
Em
2010, quando foi realizado o leilão de Belo Monte, a taxa já era de
64,2 homicídios por 100 mil habitantes. Em 2015, saltou para 124,6
mortes por 100 mil habitantes. Entre 2000 e 2015, a taxa de
assassinatos em Altamira aumentou 1.110 por cento. Apesar dos pedidos
do EL PAÍS, a Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa
Social do Pará não entregou os números de 2016 e 2017.
Não
há precisão em comparar cidades com países. Mas pode servir pelo
menos como indicativo de que algo diferente ocorreu em Altamira: no
Brasil inteiro, no mesmo período, a taxa de homicídios evoluiu de
26 mortes por 100 mil habitantes em 2000 para 27,5 em 2015. Divulgado
em junho deste ano, o Atlas da Violência, produzido pelo Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, apontou Altamira como a cidade (com mais de 100
mil habitantes) mais violenta do Brasil.
Dias
atrás, um homem que perdeu a filha assassinada e teve o filho também
perfurado por balas gritava num pequeno protesto diante de uma
farmácia: “Nós estamos sós! Nós estamos sós!”. E estão.
No
Brasil, o país em que a população descobre que a cada dia tem
mais um direito a menos,
em que Brasília e a corrupção de Brasília dominam o noticiário,
quem se importa com Altamira, agora que tiraram tudo dela? Quando a
controversa hidrelétrica estava para ser implantada e ainda havia
umas poucas vozes de resistência, brasileiros de diversos pontos do
país defendiam que era preciso produzir energia para o Brasil
crescer. As vozes que mostravam que Belo Monte era construída para
gerar propina mais do que energia,
como mais tarde ficaria comprovado, foram ignoradas. Mas foram muitos
os que pediram o sacrifício do Xingu e de Altamira. É sempre fácil
quando o sacrifício é do outro.
3) Estigma
e Perversão
Neste
momento, há um processo em curso agravado por um toque de perversão
em Altamira. A Norte Energia, empresa concessionária de Belo Monte,
construiu o que chamou de “Reassentamento Urbano Coletivo” (RUC)
para alojar a população expulsa de suas casas, ilhas e terras para
a construção da usina. A empresa havia se comprometido com casas de
alvenaria de três tamanhos diferentes e com a distância de até
dois quilômetros do local de origem, mas acabou entregando casas
muito mais longe, de um só tamanho, feitas de concreto pré-moldado
e que já começaram a exibir rachaduras e buracos.
Em
13 de setembro, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região
(TRF1) determinou
que Belo Monte parasse de operar,
suspendendo a Licença de Instalação da hidrelétrica até que a
empresa cumpra a condicionante de moradia. Mas há uma outra corrosão
e outras rachaduras que seguirão comprometendo a vida. E causando a
morte.
Hoje,
paira sobre os RUCs um estigma. Jatobá, Laranjeiras, São Joaquim,
Água Azul, Casa Nova… são nomes que soam como lugares de
violência, onde “gente de bem” não vai. E são nomes que soam
como moradias de “bandidos”. É
um processo perverso, que se torna cada vez mais acelerado e
fortalecido pelo número crescente de mortes na região dos RUCs.
Assim, além de terem sido expulsos de onde viviam, de terem seus
laços comunitários despedaçados, de serem jogados em regiões
afastadas da cidade, com escassos equipamentos públicos, de
testemunharem as casas que lhes foram impostas rachando, aqueles que
lá moram ainda precisam conviver com um estigma que assinala suas
vidas e seu cotidiano.
Os
ribeirinhos chamam a cidade de “rua”. Nesta rua, aqueles
que foram expulsos de ilhas e beiradões do Xingu hoje
sofrem violências. Também parte deles foi jogada nos RUC’s. Mas
um Conselho Ribeirinho foi criado e há um processo em curso para que
sejam reassentados junto ao reservatório da hidrelétrica para que
possam recompor o seu modo de vida. Este é um processo de
resistência a um ciclo que se repete e se repete nas grandes obras
do Brasil: ribeirinhos e também indígenas são expulsos ou
empurrados para as periferias urbanas, onde perdem a identidade e são
convertidos em pobres urbanos. Em seguida, vem a suspeição:
“bandidos”.
Neste
momento, o território de violência que são os RUCs tem seu sentido
invertido. A violência dos RUCs é a violência de base, a de
fundação: o fato de que estes bairros foram criados como parte de
um processo no qual as pessoas foram expulsas de seu lugar de origem,
separadas de familiares e de vizinhos e jogadas em casas cuja
arquitetura não respeitava seu modo de vida. E que, para piorar,
sequer o que era um projeto ruim foi cumprido. Entregaram um pior,
que literalmente rachou. Esta é a violência.
O
que se testemunha hoje é a inversão, e ela nada tem de inocente: a
população já massacrada dos RUC’s, vítima de um processo de
desorganização social produzido pelo poder público e pela empresa
que implantou Belo Monte, passa a ser colocada sob suspeição, de
forma genérica, como se todas as pessoas que lá vivem fossem
violentas. A violência então deixa de ser promovida pelo Estado e
pela Norte Energia e passa a ser das vítimas. A relação entre
causa e efeito se perde.
É
assim que a história começa a ser apagada mesmo antes de ser
devidamente documentada. Como as pessoas
que foram jogadas nestes conjuntos padronizados não se conhecem e
seguidamente vizinhos mantêm uma desconfiança mútua porque não
escolheram estar ali e queriam os vizinhos que tinham antes, porque a
maioria também queria a vida que tinha antes, é comum ver os mais
atingidos reproduzirem o mesmo discurso que os criminaliza. Neste
caso, o “bandido” é o desconhecido que mora ao lado.
O
estigma dos RUCs como território violento é fortalecido dia após
dia também por programas policiais sensacionalistas na TV aberta e
em páginas no Facebook e contas de WhatsApp que exibem suspeitos e
cadáveres, submetendo os familiares dos mortos a uma experiência de
horror e humilhação. A violência, nestes canais, é
entretenimento, com uma persistente produção de medo e desconfiança
que acentua ainda mais a própria violência.
Foi
assim com Cleber Soares, 30 anos, que foi morto pela PM em 11 de
outubro no RUC Jatobá. Segundo nota da polícia, numa troca de tiros
após dois suspeitos terem corrido após abordagem policial. Essa
narrativa, porém, é colocada em dúvida por familiares da vítima,
que acusam o Estado de execução.
O
fato comprovado até agora é que Cleber está morto. E um vídeo com
seu cadáver, vestido apenas com uma cueca, foi disseminado pelo
WhatsApp, chegando até seus familiares. Ao EL PAÍS, a Polícia
Civil do Estado do Pará,
por meio de sua assessoria de imprensa, limitou-se a afirmar que não
revelaria sequer os nomes das vítimas dos últimos dias e as
circunstâncias de suas mortes até que a apuração fosse concluída.
Enquanto
Cleber era visto quase nu por milhares de pessoas que gozam com
sangue e humilhação na internet, com a conivência de uma parcela
dos policiais, sua filha de quatro anos subia no colo de uma pessoa
que foi prestar condolências, dizendo: “Meu pai foi pro céu”. E
seu filho, de sete anos, recusava-se a sair do lado do caixão, na
sala da pequena casa de um conjunto habitacional do “Minha Casa
Minha Vida” onde Cleber era velado: “Só saio daqui quando meu
pai se levantar”. Num mundo, Cleber sequer era humano. No outro era
pai.
4)
Dor e Resistência
Magid
morava com a família numa rua do centro de Altamira. Mas, quando foi
morto, estava no RUC São Joaquim. O comentário imediato foi: “Mas
o que ele estava fazendo num lugar como aquele?”. Hoje, além da
dor de perder um filho, Málaque, sua mãe, tem que defendê-lo da
suspeição. Mais uma vez, Málaque tomou uma decisão oposta à
habitual. Magid sonhava em se formar e criar um cursinho
pré-vestibular popular, para ajudar os mais pobres a ter acesso à
universidade. Foi sobre isso a conversa que ele teve com sua mãe no
último almoço que partilharam.
Com
a ajuda financeira dos avós de Magid, a família vai comprar um
terreno e criar um cursinho popular com espaço também para rodas de
conversa e debates, próximo aos RUCs – e para atender a população
dos RUCs. “Eu não acredito em arma, eu acredito em educação”,
diz Málaque. “E era nisso que meu filho também acreditava.”
Assim, mesmo morto, as ideias de Magid seguirão vivas e fazendo
outros viverem.
Málaque
não está fazendo apenas um gesto retórico. O que diz tem lastro na
realidade. No
estudo do IPEA, ao
se comparar a cidade menos violenta, Jaraguá do Sul (SC), com a
cidade mais violenta do país, Altamira (PA), é possível verificar
o impacto da escolaridade e da renda sobre a violência. Em 2010,
quase 70% das pessoas com 18 anos ou mais de Jaraguá do Sul tinham
ensino fundamental completo. Em Altamira baixava para 46%. A renda
per capita de Jaraguá era mais do que o dobro da renda per capita de
Altamira.
Dizem
os autores da pesquisa: “Um crescimento rápido e desordenado das
cidades, como aconteceu em Altamira, no rastro da construção da
Usina de Belo Monte, pode ter sérias implicações sobre o nível de
criminalidade local. (…) O crescimento econômico faz aumentar a
oferta de postos de trabalhos, ao mesmo tempo em que eleva o salário
real do trabalhador. Isto faz com que o custo de oportunidade de
entrar no mundo da criminalidade urbana aumente, fazendo diminuir os
incentivos a favor do crime, o que contribui para a queda das taxas.
Claramente, se as boas oportunidades ficam restritas apenas a um
pequeno grupo da sociedade, o tiro pode sair pela culatra, uma vez
que o prêmio para cometer o crime aumenta para quem não participa
da festa, ou seja, para aqueles indivíduos que permanecem
desempregados, sem oportunidades e perspectivas futuras”.
5)
Entrevista e Movimento
Em
12 de outubro, pouco depois de ter preparado 91 bandejas de salgados
para que os amigos de Magid as distribuíssem para as crianças dos
RUCs, Málaque me deu uma entrevista na sala de sua casa, cujas
paredes externas e internas, assim como a porta gradeada, têm
cartazes em homenagem a Magid. Ao nos despedirmos, ela ainda disse:
“Eu não quero que as mães dos assassinos do meu filho tenham que
vê-los nus, como eu vi, nem perfurados por tiros. Eu não quero mais
mortes, eu não quero que mais nenhuma mãe passe pelo que estou
passando”.
A
dor de perder um filho não tem nome. Às vezes é preciso escrevê-la
na carne. No domingo (15/10), Málaque e suas duas filhas fizeram uma
tatuagem em homenagem a Magid. Reproduziram no braço a mesma
tatuagem que ele tinha na perna direita. E escreveram o seu nome para
que ele viva nelas.
Pergunta:
A senhora me disse ontem, depois da missa de sétimo dia: “Mataram
meu filho, mas eu não quero polícia mais armada, eu quero políticas
públicas”. Por quê?
Resposta: A
gente vem de uma família de educadores.