BRASIL NOVO NOTÍCIA: “MATARAM MEU FILHO. MAS NÃO QUERO POLÍCIA MAIS ARMADA, EU QUERO POLÍTICAS PÚBLICAS”

terça-feira, 17 de outubro de 2017

“MATARAM MEU FILHO. MAS NÃO QUERO POLÍCIA MAIS ARMADA, EU QUERO POLÍTICAS PÚBLICAS”

Em apenas quatro dias, de 29 de setembro a 2 de outubro, Altamira foi manchada pelo sangue de nove assassinatos. Estes são os assumidos pela Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Pará. Pode ser mais. E pelo menos mais uma pessoa foi morta, desta vez pela Polícia Militar, em 11 de outubro. Málaque Mauad Soberay, 47 anos, foi uma das mães que hoje chora pelo seu filho morto. Magid, de 22 anos, era estudante do sexto semestre de Geografia no campus da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Altamira. Málaque, que ganha a vida fazendo salgados para vender, destacou-se na manifestação contra a violência que percorreu as ruas da cidade. Ela puxou um coro que não era de vingança, como é tão comum em momentos de dor extrema. Málaque não pediu mais sangue. Málaque não pediu linchamento. Málaque pediu amor. Amor até mesmo pelos assassinos do seu filho. E especialmente por suas mães.

1) Paisagem e Violência

Escolher o amor é uma escolha também política, no que a política tem de humanizadora. Málaque conhece a desigualdade da zona urbana de Altamira porque foi conselheira tutelar por dois mandatos. E conhece a destruição promovida pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que ela chama de “Belo Monstro”. A cidade vive hoje um momento de terra arrasada. Mas não como metáfora. Terra e rio estão arrasados. E as pessoas morrem.
A hidrelétrica foi imposta aos povos da floresta e depois liberada pelo IBAMA sem que todas as medidas condicionantes, as de prevenção e de contrapartida determinadas para a realização de uma obra desse porte, tivessem sido cumpridas. Altamira saltou de 77 mil habitantes, em 2000, para estimados 111 mil, em 2017, um crescimento provocado em grande parte pelo movimento produzido pela implantação da usina. Belo Monte, ainda não totalmente concluída, mas liberada para operação no final de 2015, é a maior obra do setor energético do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff.
Apenas a notícia de que um investimento deste porte pode acontecer, com contratação de mão de obra e oportunidade de pequenos e grandes negócios, dá início a um intenso processo de migração que move uma parte do Brasil e a consequente mudança da paisagem urbana. Altamira era uma cidade com problemas, como grande parte das cidades à beira da Transamazônica, e tornou-se uma cidade com problemas multiplicados e ainda mais graves. Tudo isso se intensificou no início dos anos 2000, com a notícia de que a obra seria finalmente materializada no rio Xingu, depois de mais de 30 anos de resistência dos movimentos sociais e dos povos da floresta. E se acelerou a partir de 2010, quando a usina foi leiloada e em seguida construída.
Como comparação, vale lembrar que, no ano de 2000 inteiro, Altamira registrou oito assassinatos. Um a menos que nestes quatro dias de 2017.

2) Números e Carne

Em 2000, conforme dados do Observatório de Homicídios do Instituto Igarapé, a taxa de homicídios de Altamira era de 10,3 mortes por 100 mil habitantes. Entre 2000 e 2002, verificou-se um aumento significativo: a taxa passou para 35,1 homicídios por 100 mil habitantes. Ou seja: mais do que triplicou. Estes primeiros anos do século 21 são um período de grande resistência à Belo Monte e de luta pela defesa da floresta por movimentos sociais e povos tradicionais, diante dos ataques da grilagem.
O chamado “consórcio da morte”, formado por grileiros e fazendeiros, agia (e hoje voltou a agir) com desenvoltura na região. Em Castelo dos Sonhos, distrito de Altamira, Bartolomeu Morais da Silva, o “Brasília”, grande liderança popular, foi assassinado em 2002. Antes, em 2001, outro líder importante, Ademir Federicci, o “Dema”, já havia sido executado em Altamira.
Em 2010, quando foi realizado o leilão de Belo Monte, a taxa já era de 64,2 homicídios por 100 mil habitantes. Em 2015, saltou para 124,6 mortes por 100 mil habitantes. Entre 2000 e 2015, a taxa de assassinatos em Altamira aumentou 1.110 por cento. Apesar dos pedidos do EL PAÍS, a Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Pará não entregou os números de 2016 e 2017.
Não há precisão em comparar cidades com países. Mas pode servir pelo menos como indicativo de que algo diferente ocorreu em Altamira: no Brasil inteiro, no mesmo período, a taxa de homicídios evoluiu de 26 mortes por 100 mil habitantes em 2000 para 27,5 em 2015. Divulgado em junho deste ano, o Atlas da Violência, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontou Altamira como a cidade (com mais de 100 mil habitantes) mais violenta do Brasil.
Dias atrás, um homem que perdeu a filha assassinada e teve o filho também perfurado por balas gritava num pequeno protesto diante de uma farmácia: “Nós estamos sós! Nós estamos sós!”. E estão.
No Brasil, o país em que a população descobre que a cada dia tem mais um direito a menos, em que Brasília e a corrupção de Brasília dominam o noticiário, quem se importa com Altamira, agora que tiraram tudo dela? Quando a controversa hidrelétrica estava para ser implantada e ainda havia umas poucas vozes de resistência, brasileiros de diversos pontos do país defendiam que era preciso produzir energia para o Brasil crescer. As vozes que mostravam que Belo Monte era construída para gerar propina mais do que energia, como mais tarde ficaria comprovado, foram ignoradas. Mas foram muitos os que pediram o sacrifício do Xingu e de Altamira. É sempre fácil quando o sacrifício é do outro.

3) Estigma e Perversão

Neste momento, há um processo em curso agravado por um toque de perversão em Altamira. A Norte Energia, empresa concessionária de Belo Monte, construiu o que chamou de “Reassentamento Urbano Coletivo” (RUC) para alojar a população expulsa de suas casas, ilhas e terras para a construção da usina. A empresa havia se comprometido com casas de alvenaria de três tamanhos diferentes e com a distância de até dois quilômetros do local de origem, mas acabou entregando casas muito mais longe, de um só tamanho, feitas de concreto pré-moldado e que já começaram a exibir rachaduras e buracos.
Em 13 de setembro, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) determinou que Belo Monte parasse de operar, suspendendo a Licença de Instalação da hidrelétrica até que a empresa cumpra a condicionante de moradia. Mas há uma outra corrosão e outras rachaduras que seguirão comprometendo a vida. E causando a morte.
Hoje, paira sobre os RUCs um estigma. Jatobá, Laranjeiras, São Joaquim, Água Azul, Casa Nova… são nomes que soam como lugares de violência, onde “gente de bem” não vai. E são nomes que soam como moradias de “bandidos”. É um processo perverso, que se torna cada vez mais acelerado e fortalecido pelo número crescente de mortes na região dos RUCs. Assim, além de terem sido expulsos de onde viviam, de terem seus laços comunitários despedaçados, de serem jogados em regiões afastadas da cidade, com escassos equipamentos públicos, de testemunharem as casas que lhes foram impostas rachando, aqueles que lá moram ainda precisam conviver com um estigma que assinala suas vidas e seu cotidiano.
Os ribeirinhos chamam a cidade de “rua”. Nesta rua, aqueles que foram expulsos de ilhas e beiradões do Xingu hoje sofrem violências. Também parte deles foi jogada nos RUC’s. Mas um Conselho Ribeirinho foi criado e há um processo em curso para que sejam reassentados junto ao reservatório da hidrelétrica para que possam recompor o seu modo de vida. Este é um processo de resistência a um ciclo que se repete e se repete nas grandes obras do Brasil: ribeirinhos e também indígenas são expulsos ou empurrados para as periferias urbanas, onde perdem a identidade e são convertidos em pobres urbanos. Em seguida, vem a suspeição: “bandidos”.
Neste momento, o território de violência que são os RUCs tem seu sentido invertido. A violência dos RUCs é a violência de base, a de fundação: o fato de que estes bairros foram criados como parte de um processo no qual as pessoas foram expulsas de seu lugar de origem, separadas de familiares e de vizinhos e jogadas em casas cuja arquitetura não respeitava seu modo de vida. E que, para piorar, sequer o que era um projeto ruim foi cumprido. Entregaram um pior, que literalmente rachou. Esta é a violência.
O que se testemunha hoje é a inversão, e ela nada tem de inocente: a população já massacrada dos RUC’s, vítima de um processo de desorganização social produzido pelo poder público e pela empresa que implantou Belo Monte, passa a ser colocada sob suspeição, de forma genérica, como se todas as pessoas que lá vivem fossem violentas. A violência então deixa de ser promovida pelo Estado e pela Norte Energia e passa a ser das vítimas. A relação entre causa e efeito se perde.
É assim que a história começa a ser apagada mesmo antes de ser devidamente documentada. Como as pessoas que foram jogadas nestes conjuntos padronizados não se conhecem e seguidamente vizinhos mantêm uma desconfiança mútua porque não escolheram estar ali e queriam os vizinhos que tinham antes, porque a maioria também queria a vida que tinha antes, é comum ver os mais atingidos reproduzirem o mesmo discurso que os criminaliza. Neste caso, o “bandido” é o desconhecido que mora ao lado.
O estigma dos RUCs como território violento é fortalecido dia após dia também por programas policiais sensacionalistas na TV aberta e em páginas no Facebook e contas de WhatsApp que exibem suspeitos e cadáveres, submetendo os familiares dos mortos a uma experiência de horror e humilhação. A violência, nestes canais, é entretenimento, com uma persistente produção de medo e desconfiança que acentua ainda mais a própria violência.
Foi assim com Cleber Soares, 30 anos, que foi morto pela PM em 11 de outubro no RUC Jatobá. Segundo nota da polícia, numa troca de tiros após dois suspeitos terem corrido após abordagem policial. Essa narrativa, porém, é colocada em dúvida por familiares da vítima, que acusam o Estado de execução.
O fato comprovado até agora é que Cleber está morto. E um vídeo com seu cadáver, vestido apenas com uma cueca, foi disseminado pelo WhatsApp, chegando até seus familiares. Ao EL PAÍS, a Polícia Civil do Estado do Pará, por meio de sua assessoria de imprensa, limitou-se a afirmar que não revelaria sequer os nomes das vítimas dos últimos dias e as circunstâncias de suas mortes até que a apuração fosse concluída.
Enquanto Cleber era visto quase nu por milhares de pessoas que gozam com sangue e humilhação na internet, com a conivência de uma parcela dos policiais, sua filha de quatro anos subia no colo de uma pessoa que foi prestar condolências, dizendo: “Meu pai foi pro céu”. E seu filho, de sete anos, recusava-se a sair do lado do caixão, na sala da pequena casa de um conjunto habitacional do “Minha Casa Minha Vida” onde Cleber era velado: “Só saio daqui quando meu pai se levantar”. Num mundo, Cleber sequer era humano. No outro era pai.

4) Dor e Resistência

Magid morava com a família numa rua do centro de Altamira. Mas, quando foi morto, estava no RUC São Joaquim. O comentário imediato foi: “Mas o que ele estava fazendo num lugar como aquele?”. Hoje, além da dor de perder um filho, Málaque, sua mãe, tem que defendê-lo da suspeição. Mais uma vez, Málaque tomou uma decisão oposta à habitual. Magid sonhava em se formar e criar um cursinho pré-vestibular popular, para ajudar os mais pobres a ter acesso à universidade. Foi sobre isso a conversa que ele teve com sua mãe no último almoço que partilharam.
Com a ajuda financeira dos avós de Magid, a família vai comprar um terreno e criar um cursinho popular com espaço também para rodas de conversa e debates, próximo aos RUCs – e para atender a população dos RUCs. “Eu não acredito em arma, eu acredito em educação”, diz Málaque. “E era nisso que meu filho também acreditava.” Assim, mesmo morto, as ideias de Magid seguirão vivas e fazendo outros viverem.
Málaque não está fazendo apenas um gesto retórico. O que diz tem lastro na realidade. No estudo do IPEA, ao se comparar a cidade menos violenta, Jaraguá do Sul (SC), com a cidade mais violenta do país, Altamira (PA), é possível verificar o impacto da escolaridade e da renda sobre a violência. Em 2010, quase 70% das pessoas com 18 anos ou mais de Jaraguá do Sul tinham ensino fundamental completo. Em Altamira baixava para 46%. A renda per capita de Jaraguá era mais do que o dobro da renda per capita de Altamira.
Dizem os autores da pesquisa: “Um crescimento rápido e desordenado das cidades, como aconteceu em Altamira, no rastro da construção da Usina de Belo Monte, pode ter sérias implicações sobre o nível de criminalidade local. (…) O crescimento econômico faz aumentar a oferta de postos de trabalhos, ao mesmo tempo em que eleva o salário real do trabalhador. Isto faz com que o custo de oportunidade de entrar no mundo da criminalidade urbana aumente, fazendo diminuir os incentivos a favor do crime, o que contribui para a queda das taxas. Claramente, se as boas oportunidades ficam restritas apenas a um pequeno grupo da sociedade, o tiro pode sair pela culatra, uma vez que o prêmio para cometer o crime aumenta para quem não participa da festa, ou seja, para aqueles indivíduos que permanecem desempregados, sem oportunidades e perspectivas futuras”.

5) Entrevista e Movimento

Em 12 de outubro, pouco depois de ter preparado 91 bandejas de salgados para que os amigos de Magid as distribuíssem para as crianças dos RUCs, Málaque me deu uma entrevista na sala de sua casa, cujas paredes externas e internas, assim como a porta gradeada, têm cartazes em homenagem a Magid. Ao nos despedirmos, ela ainda disse: “Eu não quero que as mães dos assassinos do meu filho tenham que vê-los nus, como eu vi, nem perfurados por tiros. Eu não quero mais mortes, eu não quero que mais nenhuma mãe passe pelo que estou passando”.
A dor de perder um filho não tem nome. Às vezes é preciso escrevê-la na carne. No domingo (15/10), Málaque e suas duas filhas fizeram uma tatuagem em homenagem a Magid. Reproduziram no braço a mesma tatuagem que ele tinha na perna direita. E escreveram o seu nome para que ele viva nelas.

Pergunta: A senhora me disse ontem, depois da missa de sétimo dia: “Mataram meu filho, mas eu não quero polícia mais armada, eu quero políticas públicas”. Por quê?
Resposta: A gente vem de uma família de educadores.
A minha família materna veio do Maranhão pra Altamira numa tropa de burros e se instalou na Ilha do Arapujá, que é aquela ilha que foi desmatada aqui em frente da cidade. Minha avó materna, Tarsila Aguiar Almeida, era professora. Quando a minha mãe cresceu, ela foi da primeira turma de magistério daquela época. E foi a primeira diretora da cidade. E a nossa casa sempre foi uma casa com a qual todo mundo podia contar. Se tinha uma pessoa grávida, que não tinha como fazer enxoval, a minha mãe ajudava. Por isso ela tem muitos afilhados. A gente cresceu em meio a todas essas coisas que a minha mãe fazia. Naquele tempo, lá atrás, a gente nem pensava em políticas públicas, igualdade social. A gente pensava assim: eu tenho mais, então eu posso ajudar. Aí a gente foi crescendo, meu avô político, vereador, prefeito… E aí, logo em seguida, nós também levantamos essa bandeira. Eu fui conselheira tutelar por dois mandatos. E vivenciei muitas coisas de desigualdade, totalmente desigualdade. E como eu criei meus filhos só, a gente sempre aprendeu a dividir tudo. Porque criei quatro filhos sem renda suficiente, então a gente tinha que dividir. Mas acredito que Magid, o meu filho, teve muita oportunidade. Ele nasceu numa família estruturada. Porque não é porque é uma família só de mãe que vai ser desestruturada. Ele tinha estrutura familiar. Ele tinha amor. Ele estudou em boas escolas. Então, eu acredito que a polícia é necessária. Mas eu não acredito que seja armando a polícia, comprando viaturas, equipando a polícia que a gente combate a violência. Não quero dizer aqui para não investir na polícia do Pará. Não é isso que eu estou falando. O que eu estou falando é que bala e colete e viatura não vão resolver. O que resolve é educação. O que resolve é prevenção. O que resolve são políticas públicas voltadas para a juventude.
P: Por quê?
R: Porque Altamira está morrendo. E está morrendo porque a população jovem está morrendo. A gente quase não vê, e se vê é muito pouco, pessoas idosas falecendo. O que a gente vê são meninos e meninas, menores de idade. E também estão morrendo jovens nessa faixa etária de até 20 anos, 25 anos. Agora, eu pergunto: qual é o futuro de Altamira?
P: Qual é?
R: Nós temos que buscar respostas. Porque mal a gente enterra um jovem, como o meu filho, já faleceu outro, né. E estes são os que a gente sabe. E os outros, os outros Josés, os outros Antônios, os que são anônimos? Eu fiquei profundamente triste porque, quando assassinaram o meu filho, saiu uma entrevista do superintendente, em que ele disse que por mais que sejam dois meninos, todo mundo ali estava envolvido no tráfico de drogas. E aí eu recebi um áudio no nosso grupo da família, e a minha mãe diz assim: “Um menino que pede pra avó, na véspera do falecimento, 100 reais pra fazer a barba e cortar o cabelo e comprar apostila, esse menino não vive do tráfico. Por que o que é 100 reais no tráfico, né?”. Eu fiquei profundamente triste, porque é aí que a gente vê como a sociedade olha, como a sociedade vê. Meu filho estava no carro do avô, meu filho fazia o sexto período de geografia, meu filho era voluntário civil do Corpo de Bombeiros, no outro dia ele ia recomeçar o segundo estágio no Instituto Maria de Matias, que é uma instituição conceituada da cidade. Mas como ele estava no São Joaquim, no reassentamento, falam isso. Então, quer dizer que todo cidadão, todo jovem que mora no Jatobá, no São Joaquim, no Água Azul, ele não presta? Por que isso? Por que as pessoas acham isso? Por que elas veem isso?
P: Por quê?
R: Porque são pobres, porque são negros, porque são filhos de mãe solteira, porque são reassentados, porque moravam nas margens dos igarapés, porque moravam nas periferias. Aí, quando falam: “Mas por que teu filho tava lá? O que teu filho tava fazendo lá?”. Quer dizer, se tivesse acontecido num bairro mais nobre da cidade, talvez tivessem visto de outra forma.
P: Como responder a isso?
R: Eu chorei muito hoje de manhã, porque ontem, na missa, se falou muito de perdão. Eu não sei se eu sou capaz de perdoar, mas eu não sou capaz de desejar a morte. Porque a gente é católico e a gente faz o terço. Então, neste mês, que é o Círio, a gente faz 15 novenas. Em 15 casas, aqui na rua mesmo. Aí, na intenção do terço, eu falei: “Meu filho, que ele encontre a luz, porque eu acredito que ele estava num momento tão bom da vida dele, que ele não queria partir. Ele estava se realizando, ele estava com planos. E ele não queria, ele não queria. Mas ele tem que entender que agora ele não faz parte desse plano, né. E eu pedi também pra que desse sabedoria para os policiais, para que eles conduzissem essa investigação de uma forma correta. Porque não é porque são assassinos do meu filho e dos outros dois rapazes, que eu vou desejar a morte pra eles. Porque eles têm mãe e eu tenho certeza de que nenhuma delas gerou um filho dizendo “eu quero que ele seja assassino, eu quero que ele seja traficante, eu quero que ele seja uma pessoa má”. Foi o sistema, foi o mau governo, foi a má administração, foram esses governos corruptos, esses políticos corruptos, que em vez de pegar o dinheiro da educação e aplicar na educação, o da cultura na cultura, o do esporte no esporte, eles ficam fazendo caixa dois. Foi por isso. É por isso que o tráfico é tão atrativo. Porque, enquanto meu filho tem a mim, meu esposo e a avó e o avô pra dar 100 reais pra fazer barba e cortar cabelo, comprar apostila, tem um menino lá do São Joaquim ou, então, aqui mesmo do Centro, que não tem. E o tráfico está ali do lado. E está dizendo: “Faz isso aqui, é aviãozinho, vende isso que você ganha tanto”. Qual é o adolescente que não sonha em ter um celular? E quais são os projetos que nós temos no nosso município voltados pra esse público? Que oportunidades o governo municipal de Altamira está dando? Que oportunidades o Estado está dando? E o que a esfera maior está fazendo pra esses adolescentes? Mas os traficantes estão ali. E eles veem que é tão rápido ganhar 20 reais, 50 reais… é muito rápido. Porque o movimento do tráfico é muito ágil e organizado. Quantos meninos não querem tomar um milk-shake, né? E a mãe não tem condições porque não tem dinheiro, ou vive do Bolsa Família ou mesmo o pai é falecido. Então, são essas coisas que a gente tem que pensar…. “Ah, porque matou, porque é traficante, então tem que morrer”. Eu não acredito nisso. Apesar de toda a dor que eu estou sentindo, eu não vejo assim. Como foi a infância desse menino? Como foi a adolescência desse menino? Eu não vejo que eles nasceram pra serem assassinos. Eu vejo que faltou oportunidade, faltou orientação, faltou compromisso dos governantes para com esse jovem, para com essa família. Então eu fico pensando, o que a gente pode fazer? Eu acho que o que a gente pode fazer é unir forças. Eu quero que a morte do meu filho traga benefícios para outros jovens, porque meu filho tinha 22 anos e não queria morrer.
Meu filho era uma pessoa feliz porque a gente falava que se amava muito. E ele deitava na minha cama. E ele era imenso, era enorme, ele era muito grande. E ele me cheirava e dizia que me amava. Quando ele saiu mesmo daqui, quando ele faleceu, quando tiraram a vida do meu filho, eu não impedi ele de sair porque ele ia sair com um rapaz que estava no sétimo ano de Odontologia. Então, era um menino que frequentava a minha casa. E eu fiquei tranquila. Agora, parece que a cada dia que passa vai passando um filme na minha cabeça e vou constatando que meu filho não vai voltar mais. E isso dói muito. E eu queria que as mães pudessem se unir. Eu penso que cada parente, cada mãe, cada pai que perdeu uma pessoa pra essa violência pode se unir. Cada mãe que perdeu seu filho, independentemente de que forma foi, independentemente de que lado estava, porque pra mim não importa se o filho estava no crime ou se foi vítima do crime. Não importa o lugar em que esteja, porque ninguém, ninguém, ninguém pode tirar a vida de ninguém. Ninguém pode interromper sonhos. Ninguém pode dizer “olha, você não vai mais sonhar, você não vai concluir tua faculdade, a partir de agora você não vai beijar sua mãe”. Ninguém pode fazer isso. Então eu quero começar a direcionar alguns vídeos, algumas falas pra essas mães, porque se a gente quiser fazer, a gente faz.
P: Quer fazer um coletivo?
R: Isso. Um coletivo de mães. No dia em que sepultei meu filho teve a primeira reunião do Levante da Paz e a gente teve várias ideias. Mas é difícil, porque as mães que estavam do lado do “bem” (e ela frisa as aspas com gestos), elas têm muito medo. E as que estavam com os filhos no crime têm mais medo ainda, porque se a gente vai correr atrás dos direitos dos nossos filhos, a gente acaba mexendo com alguém, e o crime não vai entender dessa forma. O crime vai entender que a gente está querendo armar a polícia para matá-los. Mas eu não tenho medo, não tenho medo porque eu quero fazer do meu luto uma luta, porque só quem passa por isso é que sabe realmente o que é. Não quero dizer que eu sofro mais do que outra pessoa. Mas é muito difícil você gerar um ser, educar, ensinar a falar… e uma pessoa vir e tirar a vida do seu filho.
P: Como foi a noite em que ele morreu?
R: Naquela manhã ele foi trabalhar. Ele era voluntário civil do Corpo de Bombeiros. Saiu de casa às 7h35, ele pegava às 8h. Quando foi mais ou menos umas 11h30 ele passou uma mensagem pra mim providenciar a xerox da identidade e o comprovante de residência, que ele precisava ir ao Banpará, que é o Banco do Estado, pra abrir uma conta. Ele já tinha uma conta no Banco do Brasil, mas tinha que ser do Estado, abrir a conta pra vir o primeiro salário. E aí ele veio mais cedo, almoçou comigo e ficamos conversando um tempo na mesa. Ele estava com o carro do avô, que o avô tinha emprestado no final de semana. Saiu, almoçou, tomou banho e foi pro banco. E chegou do banco quase 17 horas. Aí ele falou: “Mãe, eu vou lavar o carro, porque eu vou entregar pro vô e eu quero entregar limpo”. Só que meu pai estava em Belém. Aí eu cheguei ali e disse: “Tá empenhado, né. Limpando o carro”. Fiquei ali, brincando com ele. Ele falou: “Mãe, a senhora sabe se o vô tá em Belém? Tô ligando pra ele, e ele não tá atendendo. Será que ele não quer falar comigo?”. Aí eu falei: “Ele deve estar na chácara”. Meu filho terminou de lavar o carro, foi cortar o cabelo, tomou banho e foi pra faculdade. E aí voltou da faculdade mais cedo, jantou… Eu estava sentada, assistindo à televisão, e falei: “Poxa, filho, você não gosta de peixe, pega alguma outra coisa. Tem carne, esquenta no micro-ondas”. Ele falou: “Não, mãe, feijão tá bom demais. Feijão com salada”. E aí ele comeu aqui, perto de mim. Foi pra cozinha lavar a louça dele, né. Cada um lava a sua louça aqui. Aí, quando ele voltou, disse: “Mãe, eu vou sair com o Paulo”. Eu falei: “Você tá com a sua chave? Vai com Deus”. Aí ele me beijou na testa e saiu. Foi a última vez que eu vi meu filho vivo. Era umas 9h40 da noite. Passou uns 20, 25 minutos e minha filha mais velha ligou: “Mãe, a senhora precisa ser forte”. Mas, com uma voz, assim, desesperada. “O que foi?” E ela: “Mãe, mataram o Magid”.
P: A senhora foi até lá?
R: Eu fui pedindo a Deus que cuidasse do meu filho até que eu chegasse lá pra cuidar dele. Porque, na minha cabeça, eu ia encontrar meu filho com vida. Eu nunca imaginei que eu fosse encontrar ele morto. E, quando eu cheguei, que eu vi meu filho caído, de bruços, ainda calçado…. Ele gostava de usar havaianas, e ele estava com as sandálias calçadas, com o rosto no chão. Eu pedi pra entrar, e eles falaram que estava isolado, que não podia mexer. E eu pedi: “Por favor, eu sou mãe, eu preciso ver meu filho”. Eu fui lá e é uma sensação muito, muito ruim, sabe, ver teu filho ali daquela forma, atirado… E, no chão, né, porque ele era muito vaidoso. Muito vaidoso. E eu sempre procurei lavar a roupa, colocar amaciante, passar, sabe? Aquele cuidado de mãe. E ver meu filho assim foi muito triste, muito, muito, muito, uma dor assim que não tem explicação. E aquele monte de pessoas, né. Você acaba não vendo ninguém. Só vê aquele barulho. Só lembra daquela cena, mas você não lembra de rostos. Fiquei todo o tempo perto dele e muito preocupada, porque eu não sabia o que tinha acontecido, muito preocupada se poderiam colocar alguma coisa dentro do carro que meu filho estava. Minhas duas meninas mais velhas foram comigo, e as duas ficaram perto do carro, e eu ficava perto dele. Eu ficava olhando pra ele.
P: A senhora tinha medo de que a polícia plantasse alguma coisa no carro?
R: É. Medo de tudo, porque ali estava o celular dele, tinha o carro, tinha o som, e a gente vê muitas coisas, né. Então, eu fiquei nessa agonia total. E o meu maior desespero foi quando tiraram a roupa do meu filho ali.
P: Como assim?
R: Eu fui ao banheiro, pedi na casa do lado. Fui ao banheiro. Quando eu voltei, ele estava só de cueca. Eu achei assim uma falta de… sei lá… e aí teu filho fica exposto no chão, jogado, viram de qualquer jeito. E ele nu, lá, só de cueca. E demora e demora pra retirar o corpo. Aí chegam os peritos e colocam teu filho num saco e o levam. Sabe? E depois teve uma hora que eu pedi pra entrar lá. Porque a gente quer cuidar, né. A gente sabe que não tem mais vida. A gente sabe que agora está nas mãos do Senhor, tá na mão de Deus e de Maria. Mas a gente está lá, a gente quer cuidar, a gente quer proteger. E ele falou: “Não, você não pode entrar”. Eu falei: “O senhor não é pai? O senhor não é pai? Por favor, me deixa ficar perto do meu filho, eu não vou mexer em nada. Por favor”. E ele deixou: “Vá, vá, vá”. E é muito doloroso, porque depois a gente fica pensando… Eu não dormi, porque fiquei todo o tempo pensando, imaginando a situação do meu filho. E depois eu fiquei mais triste ainda porque eu soube que o IML (Instituto Médico Legal) tem uma maca só, enquanto tem três, quatro corpos. Um fica sendo atendido na maca, os outros ficam no chão. E você perde seu filho, seu filho fica a noite toda lá, e eu fui receber o corpo do meu filho, liberado do IML, às 11h30 da manhã.
P: Do outro dia?
R: Do outro dia. Aí a gente pensa outra vez: que estrutura é essa que nós temos? Que Estado é esse? Que governo é esse que não se preocupa com a dor de uma pessoa? E aí eu estava lá, sentada, porque, mesmo que seja angustiante, eu não quero pular nenhuma fase. Não quero me dopar de remédios. Eu não quero, sabe, me isolar. Não quero. Eu quero continuar a caminhada, porque ele ia gostar disso. E ele está me dando forças pra isso. Aí: “Como é que preenche mesmo isso aqui? Mas isso aqui não sei o quê. Mas tá preenchendo o de quem? É de fulano ou de fulano? Ah! Mas não tem caneta preta. Ah! Mas não tem caneta azul. A internet caiu. Ah! Não tem papel….”. Aí, você tenta ser uma pessoa espiritualizada e serena, né, mesmo diante de todas as adversidades. Mas tive que dizer: “Quanto tempo eu ainda preciso esperar pra pegar meu filho? Porque eu preciso cuidar dele. Eu preciso arrumar. Eu preciso colocar dentro de uma urna. Meu filho era muito vaidoso… Vocês não estão entendendo a dor da gente, não?”. Estávamos eu e os parentes dos outros dois meninos. “Vocês não estão vendo que a gente está aqui desde ontem sem dormir?” Aí, ela (a funcionária do IML) falou: “É porque encontraram uma chave no bolso do seu filho”. E eu: “É a chave de casa. Você vai encontrar a chave, você vai encontrar a habilitação dele, você vai encontrar carteira de estudante….”. E ela: “É, mas eu preciso fazer um documento”. E eu falei: “O que está faltando pra você fazer o documento de entrega? Porque eu acredito que deve ter um modelo aí, que só vai trocar nome, data e vai acrescentar os itens, né”. Aí eu fui bem grossa mesmo, eu confesso, e o primeiro corpo liberado foi o do meu filho. Ele teve duas perfurações. Teve uma na coxa que atravessou. Essa que o derrubou, né. E teve outra aqui. (Aponta para as costas, logo abaixo do ombro esquerdo). A minha prima, que é médica, disse que foi essa que ocasionou o óbito dele. Porque atiraram assim, né (faz um movimento de cima pra baixo). E ela (a bala) entrou e pegou no coração. Agora, os outros dois meninos, eles foram muito perfurados.
P: Por que ele ficou quase nu no meio da rua?
R: Isso também faz parte dos meus questionamentos, porque eu vivi na pele e não quero que nenhuma mãe passe por isso. Ver seu filho exposto no meio da rua, como se tivessem atropelado um cachorro. E a pessoa tirar a roupa do seu filho. Centenas, dezenas de curiosos ali. Pessoas que ficavam comentando… E meu filho, que só andava todo arrumadinho. E com o estilo dele, né? Eu estava ontem mesmo pensando nessa cena. Ele de cueca. E eu falei, meu Deus, olha só o que a gente pensa, né. Por que quando eu fui eu não levei um lençol? Eu pensei isso, sabe. Eu pensei isso. Por que eu não levei um lençol pra cobrir o meu filho?
P: A senhora sabe o que aconteceu naquela noite, no RUC São Joaquim?
R: Eu fui lá (na polícia) buscar o celular, porque meu filho não saiu pra ir lá. E eu quero entender o que aconteceu. O que levou o meu filho pro São Joaquim? O que o levou a mudar o que ele havia planejado? Eu falei com um dos delegados envolvidos, e ele me falou que não podia me esclarecer muito, mas que estavam muito avançadas as investigações. E eu falei: “Espero que, quando vocês forem dar uma coletiva, uma entrevista sobre esse caso, que vocês realmente expliquem pra população o que aconteceu. Porque eu não vou admitir que vocês manchem a vida e a imagem do meu filho. Eu não vou permitir isso”.
P – E por que a senhora disse à polícia que não vai admitir que manchem a imagem do seu filho? A senhora tem medo que manchem?
R – Porque tudo o que acontece hoje nesse município eles dizem que está diretamente relacionado ao tráfico. Eu acredito que essa situação que aconteceu com o meu filho esteja, sim, mas não que meu filho estivesse inserido no tráfico. Será que ninguém pode ter amizade nos reassentamentos? Ninguém pode visitar alguém? Quer dizer que ninguém presta nos reassentamentos? Será que não tem pais, mães, avós, pessoas de bem lá? Será que eles veem com os mesmos olhos quem mora lá na orla, só porque é cartão postal? Então, assim, é difícil, é difícil você ver pessoas duvidando do caráter, da conduta do seu filho.
P: Além de tudo…
R: Além de tudo, você tem ainda que estar defendendo. Eu não posso simplesmente apertar um botão e voltar naquele dia, dia 2 de outubro, em que o meu filho chegou, sentou ao meu lado, jantou pela última vez uma comida que ele gostava, e parar ali. Eu não posso fazer isso. Mas, eu tenho que ter coragem pra seguir daqui pra diante. E muita serenidade, porque a gente ainda tem que ouvir comentários maldosos. Eu não gosto nem de sair de casa. Quando eu saio, esses dias eu fui comprar uma vela, eu saio de cabeça baixa, exatamente pra que ninguém venha me perguntar e fazer algum comentário indelicado. Porque, apesar de tudo, eu não quero ser indelicada com ninguém, porque não faz parte da minha índole sair gritando.
P : O que aconteceu naquela noite?
R: Eu só sei que o meu filho chegou e estacionou o carro. As portas estavam travadas e o celular dele ficou dentro do carro. Então, pra um Magid que eu conheço, que tem uma tomada do lado da sua cama, para ficar sempre conectado e com o celular nunca descarregado, eu acredito que ele não ia demorar. Ele nem chegou a entrar na casa. Ele caiu próximo ao meio fio. Ele caiu ali, o meu filho.
P: Altamira sempre foi violenta assim?
R: Aumentou muito mais com a vinda dessa construção, da barragem, de Belo Monstro. A cidade não estava planejada pra receber tudo isso. Por mais que tenham feito discussões, tenham feito isso e aquilo, acho que nunca se tem realmente a dimensão e a proporção do que pode acontecer. Nós sabíamos que ia acontecer, mas também não tínhamos noção que seria dessa forma. Eu, pelo menos, era contra a construção da barragem.
P: A senhora chama Belo Monte de Belo Monstro?
R: Sim, Belo Monstro. Essas famílias já não tinham uma vida digna aqui, né, onde elas moravam. E o pouco de dignidade que tinham foi tirada porque as tiraram do território. Por exemplo, logo aqui, onde tem essa praça perto da minha casa, esse parque, havia as palafitas ali, mas ficavam perto das escolas, né. Muitas famílias aqui frequentavam essa Igreja Batista aqui, próxima à Igreja Católica. Então, foram tiradas daqui. E levadas pra lá. Existia morte, sim. Mas aumentou muito. A violência em si, assim como o tráfico de drogas, aumentaram. A violência sexual contra crianças e adolescentes aumentou também. A prostituição é uma coisa alarmante também. E tudo ficou muito escancarado.
P: Isso com a construção da barragem?
R: Com a construção da barragem. E, aí, indo pros RUCs, ainda ficou tudo muito mais difícil. Ficaram longe das escolas, ficaram longe dos bancos, dos supermercados. Agora construíram escola lá e levaram algumas crianças daqui pra lá. Mas, muitas, os pais não aceitaram, porque a qualidade das escolas era muito inferior à qualidade das que estão aqui. Foram fechadas várias escolas também. Então, tudo isso gera violência. É quase impossível lutar contra o crime organizado. Mas eu acredito que você tem que educar. Eu acredito muito na prevenção. Eu acho que a gente tem que, a partir de agora, acordar todo mundo, a sociedade civil organizada, os governantes do município, do Estado do Pará, e abrir os cofres pra prevenção e educação. Eu acho que se nós conseguirmos ter uma escola infantil de qualidade, com alimentação de qualidade, com profissionais de qualidade, com equipe técnica de qualidade, sabe, que você possa abrir frentes de trabalho pras mulheres, pras mães, pras “pães”, né, que são mães e que são pais, a gente vai conseguir. Porque quando uma mãe sabe que seu filho está numa escola, que lá ele tem uma educação de qualidade, ela vai ficar tranquila. E lutar por salários dignos para os professores, para abrir a possibilidade de as professoras cursarem uma universidade, para terem outra visão do que é educar. Eu acho que é por aí. Eu acho que tudo começa na educação infantil. Nós precisamos que cada canto dessa cidade seja inundado de amor, porque se nós tivermos amor e respeito nós vamos ter paz, nós vamos ter filhos vivos, nós vamos ter mães vivas.
P: Uma pesquisa do IPEA mostrou que Altamira se tornou a cidade mais violenta do país. Na sua opinião, qual foi o impacto de Belo Monte nessa violência?
R: Eles destruíram tudo. Além da nossa paz, eles destruíram nossa cidade, nossa vegetação, nossa floresta, tudo. Aqui, nessa rua, todos os moradores são antigos. E eu conheço cada um dos moradores. Quando a outra parte da rua foi remanejada foi uma dor muito grande, muito grande, porque a gente era uma grande família. Cada casa que ia ser destruída era como se tivessem tirando um pedaço da gente, porque era história, porque meus filhos brincavam com os filhos dos meus amigos aqui na rua. E agora seus netos já estavam brincando com minhas netas. E então os vínculos foram rompidos. E não foram respeitados. Por quê? Alguns poucos conseguiram dialogar e ficar na mesma rua, no mesmo reassentamento. Outros, não. Então, uns ficaram no Jatobá, outros foram pro São Joaquim, outros foram pro Laranjeiras. Esse é um dos fatores que alterou a vida de todo mundo. Eu mesma fiquei uma época sem ter amigos, porque meus amigos eram todos do Açaizal e foram embora. Imagine então a vida de uma criança… Eu faço caminhada aqui no parque, às vezes eu fico tentando lembrar onde era a casa de cada um. Alguns, que tinham umas casas bem ruins mesmo, estão agora no seco, só que as casas estão todas rachadas. Essa obra destruiu tudo. Destruiu a minha vida, destruiu a vida dos meus netos, destruiu os nossos sonhos, destruiu a minha cidade, destruiu meu rio, destruiu tudo. Tirou a minha paz, a paz de todo mundo. E ainda eu tenho que pagar uma energia cara.
P: A senhora disse que a família vai realizar o sonho do Magid, de ter um cursinho popular para a população dos RUCs. Como é isso?
R: No último almoço que tivemos juntos, nós conversamos sobre esse sonho dele. Ele queria construir um cursinho popular, porque ele estava no sexto semestre de Geografia e ele tinha um amigo que se formou em Matemática e é muito bom. E eles sentaram pra conversar, e o amigo falou: “Magid, vamos fazer alguma coisa, né”. E meu filho disse: “Então, vamos ver uma forma para que toda pessoa tenha acesso à universidade”. E, quando conversamos, ele falou: “Mãe, quando eu me formar, eu vou montar um cursinho popular, onde eu possa dar aula pras pessoas que realmente precisam e que não podem pagar um cursinho tão caro”. A minha filha está terminando Pedagogia, e eu tenho uma irmã que é pedagoga também. E outra que é bióloga. E eu voltei a estudar também. Ia me formar no mesmo ano que o Magid. Eu faço Serviço Social. Meu marido faz Ciências Contábeis. Aqui é uma casa de estudantes. Meus pais são funcionários públicos aposentados e vão financiar esse sonho, comprando um terreno num bairro próximo aos RUCs. E como a gente também tem uma sobrinha que é arquiteta, ela vai fazer. A gente vai construir duas salas, uma pra cursinho e um auditório, uma secretaria e uma cantina. E a gente quer colocar laje, porque a gente sabe que não vai ficar só nisso. Eu queria que fosse um espaço para diálogo, um espaço para roda de conversa, um espaço que a gente pudesse ceder para associações de bairros, de mulheres… Temos um amigo que já foi para São Paulo para estudar os cursinhos populares de lá e que está fervilhando de ideias. Vai ter um preço acessível, apenas para manter os custos. E será para a população dos RUCs.
P: Por que especificamente para a população dos RUCs?
R: Nosso projeto é formar cidadãos. A gente quer que todo mundo tenha acesso à educação. Porque, se você tem acesso à educação, você se torna crítico. Você sabe onde procurar os seus direitos. E você sabe cobrar os seus direitos. Muitas pessoas sofrem violência, e a pessoa diz: “Você é preta, você é feia, você é pobre, você é burra”. E ela acredita nisso. Ela acredita nisso, porque não teve ninguém que dissesse pra ela: “Você é bonita, você é capaz, o seu cabelo é lindo, a sua cor é maravilhosa e você tem seus direitos”. E a Constituição de 88 está aí, e a Lei Maria da Penha também. E tem a Lei do Idoso e tem o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e tem tantas coisas que vão nos amparando e ninguém sabe disso. Então, a gente quer mostrar isso. Quer falar de diversidade sexual, quer falar de amor. E falar que todo mundo tem direito à educação. Porque o que eu quero é dizer que não é só o crime que te possibilita crescer como ser humano. Então, esse espaço do Magid vai ser pra isso.
P: Qual é o seu desejo?
R: Eu quero que as pessoas saiam de casa e que voltem pra casa.
Fonte: El País

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum

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