A
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) publicou o
relatório “A
Expulsão de Ribeirinhos em Belo Monte”,
elaborado a pedido do Ministério Público Federal (MPF) como forma
de apontar caminhos que possam permitir o retorno dos ribeirinhos
removidos pela construção da hidrelétrica e garantir a manutenção
do modo de vida na região conhecida como Volta Grande do Xingu, no
Pará. O documento foi produzido sob a coordenação das professoras
Sônia Barbosa Magalhães e Manuela Carneiro da Cunha.
“As
investigações levaram à conclusão de que a implementação da
hidrelétrica de Belo Monte vem acompanhada de um processo de
expulsão silenciosa das populações ribeirinhas do rio Xingu e os
impactos não mitigados merecem efetiva e imediata ação
reparatória”, afirmou Manuela Carneiro da Cunha durante a
cerimônia de lançamento na ExpoT&C – mostra de ciência,
tecnologia e inovação que faz parte das atividades da Reunião
Anual da SBPC, neste ano realizada no campus Pampulha da
Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte.
O
relatório da SBPC foi elaborado por 26 especialistas
multidisciplinares de diversas instituições do país, entre elas a
Universidade Federal do Pará (UFPA), a Universidade de São Paulo
(USP), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp), o Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônia (Inpa) e a Pontifícia Universidade Católica do Paraná
(PUCPR). O grupo incluiu antropólogos, ecólogos, ictiólogos,
sociólogos, juristas, psicólogos, hidrólogos e engenheiros que se
dedicaram a pesquisar a situação social, jurídica e ecológica da
região.
A
pesquisa foi feita por meio do levantamento das famílias expulsas,
da análise do modo de vida pregresso dessas famílias e das
avaliações delas sobre a adequação de possíveis áreas para
reterritorialização. Os estudiosos e as famílias ribeirinhas
analisaram os impactos na região e as alternativas para compor uma
proposta para proteção e recomposição ambiental do rio Xingu.
Situação –
Foram três grupos de ribeirinhos severamente atingidos por Belo
Monte que não tiveram seus direitos reconhecidos e passaram por um
processo de expulsão do rio: moradores da área que hoje é o
reservatório de Belo Monte, moradores da área da Volta Grande do
Xingu e indígenas nas duas áreas. Eles foram invisibilizados no
processo de licenciamento ambiental da usina.
Os
moradores da área onde hoje fica o reservatório da usina sofreram
um processo violento de remoção compulsória no ano de 2015, quando
a Norte Energia, empresa responsável pela hidrelétrica, passou a
retirá-los sem considerar as peculiaridades de seu modo de vida, que
dependia do rio e da cidade. Pessoas que viveram sempre de pesca e
agricultura foram removidas, com indenizações irrisórias, e
passaram a ocupar áreas periféricas no núcleo urbano de Altamira,
longe do rio e sem qualquer possibilidade de reconstruir suas vidas.
As
violações também são graves na região da Volta Grande do Xingu,
onde não houve remoção de moradores, mas alteração brutal dos
ecossistemas, com o desvio de mais de 80% da água do rio para
movimentar as turbinas da usina. A região, batizada nos documentos
do licenciamento ambiental de Trecho de Vazão Reduzida (TVR), não
oferece mais condições ecológicas de sustentar as famílias
ribeirinhas, tanto indígenas quanto não indígenas.
Conclusões –
Uma das principais conclusões do relatório da SBPC é que a maneira
como a empresa vem conduzindo o processo não garante condições
para a reprodução da vida ribeirinha.
No
processo de deslocamento compulsório provocado pela usina, se
acumularam injustiças e violações de direitos e o modo de vida
tradicional de boa parte da população foi ignorado. As
irregularidades já haviam sido denunciadas em julho de 2015, quando
o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) – órgão
licenciador de Belo Monte – chegou a suspender a retirada dos
moradores das margens do Xingu. Em novembro de 2015, a usina recebeu
a licença de operação, incluindo uma condicionante para que fosse
garantido o modo de vida dos ribeirinhos. A constatação da SBPC é
que não há essa garantia.
“Existe
um vazio nesse processo de Belo Monte. Há um grupo, os ribeirinhos,
que, embora sejam símbolo dos rios da Amazônia, foram invisíveis
ao licenciamento da usina. Não é possível acreditar que esse
processo vai ser corrigido se a mesma empresa que em 2015 expulsou os
ribeirinhos do rio passa a se utilizar das mesmas referências e
ainda assume a prerrogativa de definir o que é ser ribeirinho e o
que ele precisa para reconstruir sua vida”, disse a procuradora da
República Thais Santi, durante audiência pública realizada em
novembro de 2016 em Altamira (PA) em que a SBPC apresentou os
resultados de três meses de pesquisas, agora publicados em formato
livro.
A
SBPC critica a prática da Norte Energia de assentar os ribeirinhos
em áreas de preservação permanente (APP) nas margens do rio, sem
aquisição de novas áreas, o que excluiu muitos moradores de
retornar ao Xingu.
Os
estudos detectaram também um grave risco de conflitos se o processo
continuar sem mudanças, tanto com fazendeiros donos de grandes
propriedades próximas ao rio, como também entre os próprios
ribeirinhos: há muitos casos de ribeirinhos retirados pela Norte
Energia que viram as áreas onde sempre moraram serem entregues a
terceiros.
De
acordo com o relatório, a premissa básica do processo de
reassentamento dos ribeirinhos terá que dar um giro de 180 graus: o
princípio do autorreconhecimento, previsto na Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho, deverá ser cumprido e não
pode caber à Norte Energia apontar quem tem direito aos beiradões e
ilhas do Xingu.
Outro
caminho apontado no documento é a necessidade de uma área contígua
além das áreas de APP nas margens, em que os moradores tradicionais
tenham oportunidade de reconstituir a vida ribeirinha, com
recomposição de áreas degradadas e fortalecimento dos grupos e
acesso a serviços públicos essenciais. A proposta é de criação
de um território ribeirinho, iniciativa inédita no reconhecimento
dos direitos dessas populações amazônicas.
Voz –
Todas as propostas apresentadas no relatório foram discutidas com os
próprios ribeirinhos, que, por recomendação da SBPC, criaram o
Conselho Ribeirinho, reunindo 26 representantes de 13 localidades do
Xingu.
Entre
janeiro e fevereiro de 2017, em Altamira, o conselho se reuniu sete
vezes para narrar e registrar as histórias das pessoas que, antes de
Belo Monte, viviam nas localidades do Palhal, Cotovelo, Paratizinho,
Trindade, Paratizão, Arroz Cru, Costa Júnior, Bacabal, Meranda,
Pedão, Arapujá, Bom Jardim e Poção. A maior parte desses lugares
foi engolida pelas águas da hidrelétrica, mas os moradores lutam
para reconstruir a vida que sempre levaram e, para isso, fizeram um
esforço de reconstituição das memórias e dos significados de
viver como um ribeirinho.
“O
ribeirinho tem uma história, ele tem um tempo de moradia no local,
ele tem vizinhança, ele tem comunidade. Porque ribeirinho é
família. O ribeirinho não vive sozinho. O ribeirinho não é só
pescador. Ele é uma mistura. De pescador com agricultor, criador,
caçador e extrativista. Ele vive na comunidade. E é na comunidade
que ele divide a comida. E a comida ela não é comprada. É o peixe,
é a caça, é a farinha, é a fruta do mato”, diz o documento
produzido pelo conselho. “Ribeirinho tem história. Tem uma vida no
rio. Um tempo prolongado no local. O que define o ribeirinho é a sua
história, e não a casa ou o fato de estar na ilha num certo dia. A
vida do ribeirinho é o rio”, explicam os ribeirinhos.
O
conselho chegou a uma lista de moradores tradicionais que precisam
ser reconhecidos pelo órgão licenciador de Belo Monte e pela
empresa dona da usina. Da lista, alguns moradores já estão
reassentados, muitos foram reassentados em áreas que não permitem a
continuidade de modo de vida e outros foram completamente ignorados e
vivem numa situação de marginalidade em Altamira. Há vários casos
de pessoas que não têm nenhuma relação com o modo de vida
ribeirinho mas que foram reconhecidas pela Norte Energia, em razão
das limitações de seu cadastro, que não tem elementos para
efetivamente identificar quem eram os moradores tradicionais do
beiradão. Com isso, corre-se o risco de as margens do reservatório
de Belo Monte serem ocupadas por pessoas que não têm um modo de
vida sustentável.
“Criado
o Conselho, foram os próprios ribeirinhos que impuseram sua
participação na escolha dos destinos da comunidade, uma luta diária
e ainda em curso”, destacou a procuradora da República Thais Santi
durante o evento de lançamento do livro da SBPC.
No
lançamento também estavam presentes a integrante do Conselho
Ribeirinho Raimunda Gomes da Silva, a antropóloga Manuela Carneiro
da Cunha, professora titular aposentada da USP e professora emérita
da Universidade de Chicago, e a professora titular da Unifesp
Helena Nader, presidente da SBPC no período 2015-2017.
Comovida,
Helena Nader reconheceu o trabalho como uma das principais
realizações da SBPC em seus anos à frente da entidade, tendo
afetado tantas vidas diretamente, e de forma tão profunda. Nader
passou a palavra à integrante do Conselho Ribeirinho, que cantou um
poema ribeirinho e emocionou a todos presentes no lançamento do
livro.
“Eita
espinheira danada que o pescador atravessa para sobreviver,
Vive
com o barco nas costas, que dor insistente, não pode dizer,
Sonha
com belas promessas de gente importante, que vive ao redor,
Mas
entra ano, sai ano, e o tal de fulano é ainda pior,
Esse
é meu cotidiano, pois eu não me engano, pois Deus é maior,
O
mundo não acaba aqui, o mundo ainda está de pé,
Enquanto
Deus me der a vida, levarei comigo a esperança e fé.”
Com
informações da SBPC
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