Muito visados, se considerado que hoje o desafio do Pará tem se concentrado no combate aos desmatamentos de médio e pequeno porte, os assentamentos enfrentam dificuldades na promoção da regularização fundiária que também decorrem de questões históricas. Especificamente no município de Anapu, onde estão localizados três Projetos de Assentamento (PAs) e dois Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) federais, a dificuldade de regularizar a situação dos assentamentos está na existência de áreas que ainda são alvo de ações de reintegração na Justiça. “O problema aqui é fundiário. Nós temos aqui um problema de sobreposição de várias formas de destinação de terras públicas, e nenhum desses processos nunca foi concluído”, avalia Fagner Garcia, coordenador em Anapu do Posto Avançado do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a autarquia federal cuja missão prioritária histórica seria executar a reforma agrária e realizar o ordenamento fundiário no país.
Decorrente de uma prática existente na década de 1970, a alienação de terras públicas para particulares a preços mínimos fez com que muitas áreas ao longo da Transamazônica fossem usadas para especulação imobiliária, descumprindo a assinatura de um compromisso entre governo e particulares que visava uma série de obrigações em prol do desenvolvimento da região. Como consequência, até hoje o Incra busca judicialmente a reintegração de parte dessas áreas. “Desses títulos que foram distribuídos nessa época, a maioria virou especulação e eles existem até hoje”, aponta. “O Incra, na época das décadas de 1970 e 1980, quando estava dentro do prazo de fiscalização, não fiscalizou [o cumprimento das obrigações]. A primeira fiscalização que ocorreu foi em 1987, já por pressão da missionária Dorothy Stang e do movimento social organizado. E isso gerou uma série de ações na justiça. Até hoje estamos entrando com ações de retomada dessas áreas, e essas situações se arrastam por mais de duas décadas”.
Diante da existência até hoje de ações que ainda não foram julgadas, dentro de um único Projeto de Assentamento em Anapu é possível encontrar áreas que sempre foram públicas e nunca saíram do patrimônio da União; áreas que foram alienadas e já retomadas e áreas que estão em processo de retomada. “O que acontece é que a gente tem uma área já ocupada, porque a ocupação aconteceu independente do Incra, pelo fluxo natural de pessoas vindas do Nordeste e do Sul. E o Incra, à medida em que foi retomando as áreas, foi destinando na forma de Projeto de Assentamento”, explica o coordenador do posto avançado do Incra em Anapu. “Aquele título lá da década de 1970 ainda existe até que haja uma sentença judicial transitada em julgado cancelando. Então a gente tem esse mosaico”.
TENSÃO PERMANENTE
Assentado desde 2006 e um dos primeiros ocupantes do lote 55 do PDS Esperança – lote pelo qual Dorothy Stang lutou e onde morreu -, o produtor Fábio Lourenço de Souza conseguiu ser ‘remanejado’ para o lote 57 apenas há cerca de quatro meses, quando o Incra finalmente conseguiu recuperar a área, passados seis anos de disputa na Justiça. Vizinho ao lote marcado pela história da missionária, o lote 57 atualmente é ocupado por cerca de 25 famílias, sendo que dez moram ainda em áreas de pasto. “Até 2013 tinha gado pastando no 57”, recorda, ao se referir à destinação dada às terras por quem possuía direito de uso antes da desapropriação. “Depois da desapropriação, 500 hectares do lote 57 foram destinados para recuperação. O problema do desmatamento ilegal atinge a todos”.
Apesar da pressão já ser muito menor e diferente da vivenciada na época de Dorothy Stang, não é difícil perceber que muitos assentados ainda convivem com a tensão justamente pelo descontentamento de antigos detentores de títulos, após a desapropriação autorizada na justiça. Enquanto os processos judiciais de retomada das terras públicas não são totalmente concluídos, os assentados legalmente instalados dentro do PDS Esperança seguem convivendo lado a lado com as áreas que continuam em situação irregular. “O que acontece é que há documentos [das terras ainda não retomadas pelo Incra] comprados no cartório que, quando a pessoa comprou, já tinha até processo de cancelamento do CATP [Contrato de Alienação de Terra Pública], resquício do ‘terra sem homens para homens sem terra’”, explica Fábio. “Eles compravam propriedades para conseguir financiamento. Mas a pressão dos movimentos sociais e as ocupações pressionaram no Incra à retomada. Ainda hoje tem área sub judice, sem posse e que, ainda assim, tem plano de manejo aprovado pela Sema [Secretaria de Estado de Meio Ambiente]”.
(Diário do Pará)
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