Fincada discretamente em uma das árvores que abraçam a estrada de terra que dá acesso ao Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança, a placa de homenagem póstuma crivada de balas é o anúncio dos embates que continuam enraizados floresta adentro do município de Anapu, no Centro-Oeste paraense. Decorridos dez anos após o assassinato da missionária Dorothy Stang, na vicinal que leva até o lote 51 do assentamento, não é apenas a cruz de madeira cravada no local exato da morte que marca o histórico de conflitos agrários contido na região. Apesar da evidente melhoria na qualidade de vida dos assentados, um resquício de tensão permanece vivo por entre os galhos da floresta.
Diante dos açaizeiros, tomados de frutos e da esperança por um meio de sobrevivência mais consistente, a alegria do assentado Francisco Pereira dos Reis, 58, é evidente. Mas não deixa esquecer os momentos de dificuldade enfrentados anos atrás, logo após a perda de Dorothy. Morador de outro assentamento em Anapu, onde a missionária também atuava, o PDS Virola Jatobá, ainda hoje Francisco tem a expressão modificada pela tristeza ao falar na morte da missionária. Assassinada com seis tiros, em decorrência dos conflitos pela terra que culminaram na criação do PDS Esperança, Dorothy vem à memória do produtor naturalmente. “Eu vim na época da irmã. Foi uma perda muito grande [a morte da missionária]. Quebrou a nossa respiração. Ficamos parados, sem suporte”, interrompe a fala. “Ela saiu daqui na sexta-feira pra ir pro [PDS] Esperança e na outra semana tombaram ela”.Seu Francisco se vale da mesma expressão usada para descrever a derrubada de muitas árvores no local – tombadas, muitas vezes, ainda antes de parte das terras serem retomadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para virar assentamento.
O assentado encerra o assunto do assassinato tão subitamente quanto começou. Apesar de inevitável, a conversa sobre o episódio, ocorrido há exatos dez anos, é sempre acompanhada de apreensão. “Essa área era só capoeirão e capim. Gado ficava solto aí. Com a retirada do gado, recuperou algumas áreas. O gado acabava com tudo ao redor”, inicia outro assunto. “Hoje, com a assistência técnica, temos a perspectiva de conseguir sobreviver daqui, como está acontecendo. A gente começou a comercializar açaí no ano passado. Espero daqui a um ano ou dois anos conseguir cinco mil quilos dentro da área de 20% [de Reserva Legal]”.
CONTROLE
Alvo não apenas de disputas pelo uso da terra que acabam, algumas vezes, em derramamento de sangue, as questões agrárias também possuem relação direta com o combate e o controle do desmatamento. Passível de punições previstas no Código Florestal Brasileiro, a repressão dos atores de desflorestamentos ilegais só é possível se os responsáveis pela terra estiverem claramente identificados. Para o professor de direito agrário da Universidade Federal do Pará, Girolamo Treccani, a relação é evidente. “Qual é hoje o grande problema de coibir o desmatamento, entre outras coisas, olhando o aspecto fundiário? É que eu não sei quem é quem. Como é que eu posso punir alguém se eu não tenho certeza absoluta de que aquele imóvel é desta determinada pessoa?”, questiona. “A insegurança fundiária me leva a uma dificuldade de punir os responsáveis. Portanto, o desafio fundamental para qualquer questão fundiária e ambiental é, primeiro, entender quantas terras foram incorporadas no patrimônio público federal e estadual e, segundo, quantas terras foram destinadas a particulares e o que não foi destinado para particulares. Qual foi a sua destinação?”.
Quando se analisa a situação agrária do Pará, o obstáculo maior está justamente aí. Dentro dos 124 milhões de hectares do Estado, divididos em 144 municípios, é possível encontrar áreas de responsabilidade de diversos órgãos federais e estaduais, o que dificulta o controle mais amplo caso não haja integração entre as informações mantidas por cada um deles. “Existe um grande número de atores públicos que têm responsabilidades. A minha reflexão pessoal é de que, analisando a história recente do Estado do Pará, a melhor expressão que caracteriza essa situação fundiária é a de caos fundiário”, analisa Treccani. “Hoje, pelos meus estudos, chego à conclusão de que nem a União, nem o Estado do Pará conhecem de maneira sistematizada quantos títulos eles deram, que tipo de título eles deram, se provisórios ou definitivos, para quem, qual o tamanho e aonde. Essas cinco coisas fundamentais, nem a União, nem o Estado do Pará conhecem de maneira sistematizada”.
Se considerados os artigos 37 a 39 da Lei 11.977 de 7 de julho de 2009, todos os cartórios de registros de imóveis teriam que ter seus livros digitalizados desde a entrada da lei em vigor. Isso, porém, ainda não foi cumprido mesmo após o fim do prazo dado, de cinco anos. Digitalizados, tais dados permitiriam que os diversos órgãos integrassem suas informações cadastrais evitando problemas como os que, em alguns casos, já são enfrentados no Pará. “Em 2009 o Incra criou o Projeto de Assentamento Agroextrativista na ilha de Saracucu, lá no Marajó. Um ano depois, a Sema criou um parque no local. Portanto, são duas realidades jurídicas absolutamente conflitantes. Esse é um exemplo muito importante para entender a necessidade desta integração de informações”, pondera o professor Treccani. “Uma terra arrecadada pelo Incra em 1982 no município do Acará foi titulada pelo Iterpa em 2002. Ora, se esta é uma área pública federal, nunca o Iterpa poderia titular naquilo que não é dele. Portanto, quando falo de caos fundiário, não é de graça”.
(Matéria produzida pelo DIÁRIO em colaboração com a agência ANDI Comunicação e Direitos e Climate and Land Use Alliance (Clua))
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