A
hidrelétrica de Belo Monte só poderá mover suas turbinas e gerar
energia quando estiver completamente pronta, em 2019, por causa do
sacrifício da Volta Grande do Xingu, uma região antes conhecida
pela imensa riqueza que continha em sociobiodiversidade, tanta que
foi selecionada pelo Ministério do Meio Ambiente como área de alto
interesse para conservação. A importância do local não impediu a
obra e a situação ficou ainda mais tensa quando a empresa canadense
Belo Sun, do banco Forbes&Manhattan, iniciou junto ao governo do
Pará, em 2009, um processo de licenciamento para instalar a maior
mina de ouro do Brasil no mesmo local. Hoje, depois do fechamento da
barragem no rio e com a empresa canadense comprando terras
irregularmente e fechando pequenos garimpos, os 100 quilômetros da
Volta Grande são habitat para a incerteza, o medo e a pobreza que
mantém em suspenso a vida de dezenas de comunidades indígenas,
ribeirinhas e garimpeiras.
Os
moradores da Volta Grande se reuniram no último dia 21 de março com
autoridades envolvidas nos dois empreendimentos, em audiência
pública promovida pelo Ministério Público Federal com a
participação do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, que
licencia Belo Monte), Secretaria Estadual de Meio Ambiente e
Sustentabilidade (Semas, que licencia Belo Sun), Fundação Nacional
do Índio (Funai), Defensoria Pública da União (DPU), Defensoria
Pública do Estado do Pará (DPE), Ministério Público do Estado do
Pará (MPPA), Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e
pesquisadores da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC), Isa (Instituto Socioambiental) e UFPA (Universidade Federal
do Pará) que monitoram a situação da Volta Grande do Xingu.
Representantes da empresa Belo Sun também compareceram, mas a Norte
Energia, que é responsável direta pela maioria dos impactos, se
recusou a participar da audiência pública.
A
procuradora da República Thais Santi abriu a audiência pública
lembrando que as comunidades da Volta Grande do Xingu são aquelas
que se sacrificam para que Belo Monte possa gerar energia. É na
Volta Grande que fica o Trecho de Vazão Reduzida, o trecho do Xingu
que vai ficar sob monitoramento por seis anos fornecendo 80% de sua
água para as turbinas da usina. “A pergunta que fazemos aqui é: o
trecho de vazão reduzida permite a vida no Xingu?”, questionou
Thais. O morador da ilha da Fazenda, Gilberto Lisboa, foi o primeiro
a falar sobre a situação de pobreza em que todos estão vivendo e
conta que moradores abandonam as casas, sem indenização, pela
dificuldade de viver no local.
“Nós
não queremos sair da Volta Grande, mas precisamos de um lugar em que
seja possível continuar vivendo”, diz Gilberto Lisboa. Dona Deca,
técnica de enfermagem e professora da região, que fez dezenas de
partos e alfabetizou dezenas de crianças, reclamou das promessas não
atendidas. “Nós somos gente também”, disse enquanto mostrava
fotos do posto de saúde e da escola que foram fechados após a
chegada de Belo Monte e de Belo Sun. Em vez de assegurar saúde e
educação, os empreendimentos retiraram esses direitos. “Nós
precisamos de uma escola, precisamos de um posto médico. De quem a
gente pode cobrar, se estamos abandonados”, resumiu dona Deca.
Comunidades
de garimpeiros da Volta Grande cobraram das autoridades as décadas
de ausência. O estado nunca foi regulamentar os garimpos na região
e quando enfim chegou à Volta Grande foi para fechar os garimpos e
trazer a empresa estrangeira. O fechamento dos garimpos por Belo Sun,
somado à falta de peixes e água causada por Belo Monte, sufocou a
vida econômica da região. Sem projetos ou compensações, moradores
foram reduzidos à miséria e agora a mineradora Belo Sun é apontada
como solução. Para o MPF tal solução é inadmissível. “É
obrigação do governo federal e da Norte Energia garantir a vida na
Volta Grande. Qualquer novo empreendimento só pode ser pensado
depois disso”, disse a procuradora Thais Santi.
Os
ribeirinhos da Volta Grande do Xingu, maiores conhecedores do rio e
de seus ritmos, não sabem mais como a água vai se comportar. E
também não podem confiar nas previsões da Norte Energia ou do
Ibama, que se mostram duvidosas desde que o rio foi barrado em
novembro de 2015. Após uma enxurrada imprevista que levou pertences
e deixou os moradores em pânico, ocorrida na noite de 25 de janeiro
de 2016, estacas foram colocadas pela Norte Energia ao longo da Volta
Grande informando até onde o rio subiria. Os moradores se orientaram
pela informação, fizeram roças e os índios Juruna enterraram o
irmão do cacique Gilliard, Jarliel Juruna, morto afogado em 2016,
com base nas estacas da empresa. Mas, apesar das previsões, durante
as chuvas desse ano o riu subiu muito acima das estacas, roças foram
perdidas e o túmulo de Jarliel, alagado.
Durante
a audiência, os moradores fizeram um minuto de silêncio em
homenagem a Loquinho Pescador, que morreu ao tentar atravessar o
banzeiro provocado pela barragem. O banzeiro, área de águas
revoltas perto do barramento, de difícil transposição, dificulta
muito que os moradores cheguem à Altamira, pelo risco de naufrágio.
Os moradores reivindicam que sejam mantidas embarcações maiores,
pela empresa, para garantir a transposição segura da barragem pelos
moradores da Volta Grande.
Outra
situação relatada é a falta de água potável na Volta Grande. A
pesquisadora Cristiane Carneiro, da UFPA, que monitora as condições
da água, explicou que depois do barramento do Xingu os poços
secaram, fazendo com que moradores tenham que andar muito para obter
água ou se submeterem a tomar água de má qualidade, causando
doenças em crianças e adultos. O Ibama, durante a audiência, disse
desconhecer o problema da falta de água potável. A defensora
pública do Pará Andreia Barreto apontou ao Ibama que, assim como no
caso de Altamira, os sistemas de saneamento previstos no
licenciamento para a Volta Grande até hoje não estão funcionando,
o que explica em parte a dificuldade de acesso à água potável.
Monitoramento
independente – Os índios Juruna e Arara, das terras
indígenas Paquiçamba e Arara da Volta Grande, chegaram juntos ao
auditório já lotado por ribeirinhos e garimpeiros. Eles foram
responsáveis por apresentar os dados do monitoramento independente
conduzido pelos Juruna com pesquisadores da UFPA e do Isa. O cacique
Gilliard Juruna exigiu respeito à consulta prévia, livre e
informada, prevista na Convenção 169 da OIT. “Eles levam o ouro e
a gente fica com os rejeitos”, disse. “Sempre vivemos na região,
não pedimos empreendimento nenhum e agora estão lá os dois maiores
empreendimentos do país e a gente sem garantia de nada”, resumiu.
Zé
Carlos, cacique dos Arara da Volta Grande, lado a lado com os Juruna,
lembrou às autoridades que tentaram dividir os índios para
facilitar Belo Monte. Ibama e Funai visitaram as terras indígenas
durante o licenciamento de Belo Monte, fazendo reuniões e garantindo
que mais tarde seria feita a consulta prévia. Em vez disso, enviaram
vídeos dessas reuniões para a Justiça e tentaram alegar que aquilo
havia sido a consulta prévia. “Isso não vai se repetir com Belo
Sun”, avisa Zé Carlos. “Nós exigimos nossos direitos e não
vamos nos dividir, estamos juntos”.
Os
índios confrontaram os representantes da mineradora Belo Sun para
que a empresa não chame seu projeto de Volta Grande. “Volta Grande
é vida e esse projeto é de destruição. Queremos que se mude o
nome desse projeto, não se chame mais de Volta Grande”, disse Bel
Juruna, liderança da terra indígena Paquiçamba. Bel reforçou a
exigência de respeito à consulta prévia, que não foi feita para
Belo Monte mas deverá ser feita pela Belo Sun. O MPF move uma ação
judicial exigindo a consulta, que já tem sentença favorável da
Justiça Federal. E os Juruna iniciaram a construção de um
protocolo de consulta para guiar o procedimento. A empresa canadense
não só não iniciou a consulta como falhou em apresentar um estudo
de impacto sobre os indígenas, exigido pela Funai.
As
conclusões do monitoramento independente feito pelos Juruna
confrontam diretamente as conclusões produzidas pela empresa Norte
Energia em seus relatórios semestrais, entregues ao Ibama. Os
estudos dos Juruna mostram o desaparecimento gradativo de espécies
de peixes como o pacu, que dependem das cheias do Xingu. Os índios
questionaram o Ibama, que proíbe a pesca do acari-zebra, espécie
ornamental endêmica da Volta Grande e de grande importância
econômica para os moradores, mas concedeu licença a Belo Monte, que
colocou a espécie em risco de extinção. Os Juruna e Arara
reivindicaram ao Ibama, durante a audiência, que as conclusões do
monitoramento independente sejam reconhecidas na análise do
licenciamento.
O
professor Juarez Pezzuti, da UFPA, apresentou sua análise dos
relatórios de monitoramento, tanto dos Juruna quanto da Norte
Energia. Juarez notou que aquilo que foi previsto nos estudos de
impacto ambiental de Belo Monte está se confirmando em todos os
dados: redução da pesca, danos à segurança alimentar,
desaparecimento de espécies, escassez de água. Tudo foi previsto no
Eia da usina e os dados coletados até agora confirmam todos os
danos, mas inexplicavelmente relatórios da Norte Energia concluem
que não há impacto. Para Pezzuti, as conclusões da Norte Energia
sistematicamente contradizem os dados e o Ibama vem aceitando os
relatórios da empresa acriticamente.
Vazão
reduzida – É da Volta Grande que Belo Monte retirará 80%
da água que corre no Xingu para fazer rodar suas turbinas. Nos
documentos do licenciamento, a região batizada em homenagem à
acentuada curva que o rio faz desviando o curso ao sul, logo após a
cidade de Altamira, ganhou um novo nome. O que os moradores
tradicionais chamam de Volta Grande do Xingu, tecnicamente passou a
ser chamado de Trecho de Vazão Reduzida.
A
mudança ecológica que pessoas, animais e plantas vão enfrentar é
de tamanha gravidade que Ibama não teve como assegurar, durante a
etapa de estudos, que a região vai sobreviver a um impacto tão
drástico. Por isso, estabeleceu um período de monitoramento de seis
anos, a contar do fim da obra em 2019, durante o qual testará dois
tratamentos diferentes para o Trecho de Vazão Reduzida. É o dito
Hidrograma de Consenso, que foi projetado para que a usina libere, em
um ano, o máximo de 4 mil m3 de água para a região e no seguinte,
8 mil m3 de água. O teste sobre a capacidade de sobrevivência da
Volta Grande determinará também a capacidade de geração de
energia de Belo Monte.
O
hidrograma chamado de consenso contradiz a afirmação do próprio
Estudo de Impacto Ambiental de Belo Monte, de que a quantidade de
água a ser liberada para assegurar a sobrevivência da Volta Grande
terá que ser de 15 mil m3. O pesquisador Juarez Pezzuti afirmou que,
mesmo com a previsão de que uma vazão menor do que essa colocaria a
região em um estresse hídrico insustentável, o Ibama aceitou que a
vazão máxima de água liberada pela usina para os moradores do
Xingu seja de 8 mil m3. Para Pezzuti, a decisão pode acarretar a
perda de espécies, porque 50% delas dependem das inundações
sazonais para continuar se reproduzindo.
Belo
Sun – A representante da Funai, Janete Carvalho,
recomendou mudanças no monitoramento da Volta Grande e, sobre a
tentativa de instalação da Belo Sun, lembrou o que ocorreu em
Mariana. A terra indígena mais próxima da barragem da Samarco
rompida fica a mais de 300 km e até hoje o povo indígena Krenak não
tem água potável suficiente para viver. “Qualquer acidente em
Belo Sun vai criar uma situação de etnocídio. O risco é
inaceitável”, disse. Em 2013 a Funai recomendou à Semas que o
licenciamento ambiental só inicie após o tempo de monitoramento de
seis anos da Volta Grande. A Funai afirma que não há estudo válido
de Belo Sun sobre o impacto aos índios.
Para
MPF, CNDH, DPU e DPE, o projeto dos canadenses possui muitas
irregularidades, já apontadas em pelo menos quatro ações
judiciais. A consulta prévia não foi respeitada, a condicionante da
licença ambiental da mineração, que exigia apresentação de
estudos indígenas, também não foi cumprida e existem
irregularidades fundiárias que levaram a Justiça do Pará, a pedido
da DPE, a suspender a instalação da Belo Sun.
O
MPF também cobrou a apresentação de um plano de vida para Volta
Grande do Xingu e que o Ibama seja convidado a se manifestar no
licenciamento de Belo Sun, diante da sinergia evidente de impactos
entre os empreendimentos. O Secretário de Meio Ambiente e
Sustentabilidade, Luiz Fernandes, afirmou que já convidou o Ibama a
participar e se comprometeu perante a audiência a reiterar o convite
para que o Ibama integre o licenciamento de Belo Sun.
Encaminhamentos
– “O plano de comunicação da Norte Energia para a
Volta Grande não existe. O que falta para o Ibama obrigar a Norte
Energia a apresentar um plano de comunicação que funcione? Não é
possível que uma comunidade impactada como a Ilha da Fazenda não
tenha uma escola e um posto de saúde, um transporte escolar digno. O
que falta para o Ibama multar a Norte Energia pelo abandono total da
Volta Grande do Xingu?”, questionou o representante do Conselho
Nacional de Direitos Humanos, Francisco Nóbrega.
O
Ibama concordou com algumas das críticas. “As falhas de
comunicação são evidentes, até pela ausência da Norte Energia
nessa audiência pública. A falta da Norte Energia aqui prejudica o
debate”, disse Frederico Amaral, representante da Diretoria de
Licenciamento do órgão. Ele propôs que seja estabelecido um
cronograma fixo para reuniões com as comunidades atingidas e
mudanças também quanto ao monitoramento das condições da Volta
Grande. Confira todos os encaminhamentos da
audiência.
Fonte:
Ministério Público Federal no Pará
Nenhum comentário:
Postar um comentário